De um canto oculto da cela
abafada sai uma figura magra e esquisita, porém familiar. Encostando-se no
banco ele diz secamente:
-Oi
-Quem é você?
Respondi.
-Eu? Como você me diz ‘você’, se
só você está aqui?
-Sim. Mas a não ser que eu esteja
delirando, você está aqui. Quem é você e como entrou aqui?
O estranho pega um cigarro e
acende. Suas mãos são finas e tremem. Suas articulações parecem dobradiças
mecânicas do corpo. E um sobretudo se ergue até sua nuca, escondendo o pescoço,
provavelmente tão fino quando o rosto. Ele é esquelético e a voz treme quando
fala.
-Olhe para mim, você me conhece
muito bem, evidentemente que me conhece tanto quanto conhece a si mesmo. Na
mesma intensidade, na mesma direção no mesmo sentido.
-De fato, você não me é estranho,
mas não somos íntimos!
-Não somos íntimos? Só me faltava
essa!(gargalhadas).
No íntimo eu senti um calafrio.
Ele não se parece um louco, nem eu estou.
Ele se aproxima de mim, joga o
cigarro no chão. Seu hálito é um misto de álcool e nicotina. Ele olha no fundo
dos meus olhos e eu me vejo olhando pra mim.
-Por favor, não seja hipócrita.
Não minta para si. Ou devo dizer, “para mim”? Olhe bem no fundo dos meus olhos
negros e diga que não me conhece! Olhe para o meu cabelo, minhas mãos e minha
roupa e diga que não sabe quem sou eu! Perceba a minha capacidade de vício.
Note como tudo isso faz parte de você. A
inquietação, a hiperatividade, ansiedade e diga que isso não faz parte de seu
caráter. Olhe a revolta na minha boca seca, a rebelião e a insatisfação em ser
você mesmo e tente me dizer que nunca sentiu isso. Poupe-me do seu medo em
assumir seus erros, assuma que você é tudo isso que você vive combatendo.
Reconheça que eu sou você!
Fui tomado pelo silencio. Até
sentir respostas fluírem livremente da minha boca.
-Talvez, você seja eu. Mas eu não
sou você. Não hoje. Não mais. Tudo em mim se fez novo ainda que eu tenha toda
essa capacidade de rebelião. Revoltar-se não pertence mais a mim. Não confio no
que posso fazer, mas sim no que um dia foi feito por mim.
-Não chore garotinho. Ainda que
você tente se esconder por trás dessa roupa de refugiado coitadinho. Suas
atitudes revelam quem você é. Você teme assumir sua total rebelião contra a
vida alienando-se na fé. Eu consigo sentir o medo em você. Estar aqui sozinho
comigo nessa cela não te faz bem.
-Já me acostumei. Não se
preocupe. O que não me faz bem é o mofo dessa parede. Se eu sou você, já
aprendi a te amar. Apesar de tudo.
O amor não parece afetar muito
bem o intimo conhecido. Em lugar de quebrantamento, ele parece revoltado, como
quem não sabe ser amado. Como um escorpião, que por natureza despreza o
socorro. Como um bicho, sua reação é violenta. Ele me encara e grita.
-Você não vai usar essa capa
durante muito tempo. Seu auto-sacrifício é também uma extensão de seu egoísmo.
Pegue meus vícios, minha revolta, seus medos e covardias. Nossas desconfianças
e incredulidades. Coloque tudo num liquidificador com um pouco de
nitroglicerina e você vai ver que somos a mesma coisa. Basta apertar um botão. Somos
um mistura explosiva. Uma hora ou outra eu vou aparecer novamente. E você vai
gostar. Você precisa de mim.
-Meu auto-sacrificio não é movido
por egoísmo. Não tenho sido mudado por meio de tradições. Minha nova jornada e
meu novo alvo não são coisas que se podem ver, nem muito menos busco aprovações
de homens. Senão não estaria preso. O que faço é por amor ao conhecimento
daquele que me libertou. E essa marca que eu carrego na mão foi coberta por
outro selo, fui selado pela liberdade.
-E seu “amor” (ironicamente) é
uma coisa interessantemente limitada... Ele só funciona até você falhar.
-Ora, cale-se! “Nisto está o
amor, não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou a nós, e
enviou seu Filho para propiciação pelos nossos pecados... E Nós o amamos a ele
porque ele nos amou primeiro.”*
O esquisito se afasta, recua e se
esconde em sombras. Não o vejo, mas ele permanece lá.
Estou só na cela. Novamente. Comigo
mesmo. E começo a entender coisas que mudaram minha percepção da vida. Ele nos
amou primeiro. Se eu compreender e aceitar isso, há esperança.
*1Jo 4:19
12 de julho de 2012
J.Caetano Jr.