quinta-feira, 12 de julho de 2012

Diário de Bordo#9: Comigo mesmo


De um canto oculto da cela abafada sai uma figura magra e esquisita, porém familiar. Encostando-se no banco ele diz secamente:

-Oi

-Quem é você?

Respondi.

-Eu? Como você me diz ‘você’, se só você está aqui?

-Sim. Mas a não ser que eu esteja delirando, você está aqui. Quem é você e como entrou aqui?

O estranho pega um cigarro e acende. Suas mãos são finas e tremem. Suas articulações parecem dobradiças mecânicas do corpo. E um sobretudo se ergue até sua nuca, escondendo o pescoço, provavelmente tão fino quando o rosto. Ele é esquelético e a voz treme quando fala.

-Olhe para mim, você me conhece muito bem, evidentemente que me conhece tanto quanto conhece a si mesmo. Na mesma intensidade, na mesma direção no mesmo sentido.

-De fato, você não me é estranho, mas não somos íntimos!

-Não somos íntimos? Só me faltava essa!(gargalhadas).

No íntimo eu senti um calafrio. Ele não se parece um louco, nem eu estou.
Ele se aproxima de mim, joga o cigarro no chão. Seu hálito é um misto de álcool e nicotina. Ele olha no fundo dos meus olhos e eu me vejo olhando pra mim.

-Por favor, não seja hipócrita. Não minta para si. Ou devo dizer, “para mim”? Olhe bem no fundo dos meus olhos negros e diga que não me conhece! Olhe para o meu cabelo, minhas mãos e minha roupa e diga que não sabe quem sou eu! Perceba a minha capacidade de vício. Note como tudo isso faz parte de você.  A inquietação, a hiperatividade, ansiedade e diga que isso não faz parte de seu caráter. Olhe a revolta na minha boca seca, a rebelião e a insatisfação em ser você mesmo e tente me dizer que nunca sentiu isso. Poupe-me do seu medo em assumir seus erros, assuma que você é tudo isso que você vive combatendo. Reconheça que eu sou você!

Fui tomado pelo silencio. Até sentir respostas fluírem livremente da minha boca.

-Talvez, você seja eu. Mas eu não sou você. Não hoje. Não mais. Tudo em mim se fez novo ainda que eu tenha toda essa capacidade de rebelião. Revoltar-se não pertence mais a mim. Não confio no que posso fazer, mas sim no que um dia foi feito por mim.

-Não chore garotinho. Ainda que você tente se esconder por trás dessa roupa de refugiado coitadinho. Suas atitudes revelam quem você é. Você teme assumir sua total rebelião contra a vida alienando-se na fé. Eu consigo sentir o medo em você. Estar aqui sozinho comigo nessa cela não te faz bem.

-Já me acostumei. Não se preocupe. O que não me faz bem é o mofo dessa parede. Se eu sou você, já aprendi a te amar. Apesar de tudo.

O amor não parece afetar muito bem o intimo conhecido. Em lugar de quebrantamento, ele parece revoltado, como quem não sabe ser amado. Como um escorpião, que por natureza despreza o socorro. Como um bicho, sua reação é violenta. Ele me encara e grita.

-Você não vai usar essa capa durante muito tempo. Seu auto-sacrifício é também uma extensão de seu egoísmo. Pegue meus vícios, minha revolta, seus medos e covardias. Nossas desconfianças e incredulidades. Coloque tudo num liquidificador com um pouco de nitroglicerina e você vai ver que somos a mesma coisa. Basta apertar um botão. Somos um mistura explosiva. Uma hora ou outra eu vou aparecer novamente. E você vai gostar. Você precisa de mim.

-Meu auto-sacrificio não é movido por egoísmo. Não tenho sido mudado por meio de tradições. Minha nova jornada e meu novo alvo não são coisas que se podem ver, nem muito menos busco aprovações de homens. Senão não estaria preso. O que faço é por amor ao conhecimento daquele que me libertou. E essa marca que eu carrego na mão foi coberta por outro selo, fui selado pela liberdade.

-E seu “amor” (ironicamente) é uma coisa interessantemente limitada... Ele só funciona até você falhar.

-Ora, cale-se! “Nisto está o amor, não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou a nós, e enviou seu Filho para propiciação pelos nossos pecados... E Nós o amamos a ele porque ele nos amou primeiro.”*

O esquisito se afasta, recua e se esconde em sombras. Não o vejo, mas ele permanece lá.

Estou só na cela. Novamente. Comigo mesmo. E começo a entender coisas que mudaram minha percepção da vida. Ele nos amou primeiro. Se eu compreender e aceitar isso, há esperança.


*1Jo 4:19

12 de julho de 2012
J.Caetano Jr.

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